Comunicação no Congresso de Ciências Veterinárias [Proceedings of the Veterinary Sciences Congress, 2002], SPCV, Oeiras, 10-12 Out., pp. 207-209
Bem estar animal, aspectos relativos à produção e à utilização do touro de lide
Joaquim Grave
Estação Zootécnica Nacional, Vale de Santarém, 763-2000
Sumário
O «bem estar animal» relativo ao toiro de lide tem, necessariamente, de ser equacionado em duas fases da sua vida: a produção, que se relaciona com o tempo em que o animal permanece no campo e que podemos chamar a sua “vida privada”, que dura normalmente quatro anos e a sua utilização no espectáculo das corridas de toiros, razão fundamental e única da sua produção e que podemos chamar a sua “vida pública”, que dura aproximadamente vinte minutos.
Produção (criação) do toiro de lide
Por razões de ordem ética, comportamental e também de preservação de características absolutamente necessárias para uma boa funcionalidade no espectáculo a que se destina, procura-se que os animais permaneçam intocáveis até à sua lide em praça. A ética da lide exige que ele não tenha sido manipulado. O toiro deve estar puro de qualquer contacto e deve apresentar-se como um ser vivo preservado. Este isolamento apenas se altera por força dos tratamentos profiláticos, a que devem estar sujeitos, pelo menos uma vez por ano.
Se quanto a esta primeira fase, a produção, creio ser consensual a excelência do trato a que o toiro bravo é votado (sem paralelo entre os da sua espécie), o mesmo não acontece quanto à sua condição durante a utilização na corrida de toiros, naquilo a que vulgarmente chamamos a lide do toiro.
Utilização do toiro na corrida (lide)
O «bem estar animal» pode e deve ser definido e conhecido de um modo científico pondo de parte envolvimentos e considerações morais. O «bem estar animal» é um estado de completa saúde mental e física, onde o animal está em perfeita harmonia com o meio ambiente que o rodeia.
O facto de ser aficionado à festa dos toiros, nunca ofuscou a minha curiosidade sobre as questões éticas ligadas à relação homem/animal na tauromaquia e de considerá-las extremamente importantes. Seria de todo imprudente, que aqueles que conhecem a corrida não se preocupassem do estatuto ético do animal e deixassem o terreno desta reflexão, àqueles que a não conhecem. Em realidade, para se emitir uma opinião fundamentada sobre qualquer questão, neste caso um espectáculo, é necessário entendermos esse mesmo espectáculo. Os que à priori se negam ao seu entendimento, evocando um excesso de sensibilidade, podem presumir do que quiserem menos de entendimento. Poderão presumir se quiserem, de uma sensibilidade instintiva, primária, rudimentar, no fundo reflexa como a de um animal qualquer e reflectem mais depressa um déficit de sensibilidade do que, como afirmam, um excesso de sensibilidade.
Nesta intervenção, partirei do princípio que na corrida existe uma certa ética na relação homem/animal, ou por outras palavras, e contrariamente ao que afirmam os que a não conhecem, na corrida o toiro não é tratado como uma coisa, já que não se lhe pode fazer qualquer coisa indiscriminadamente. Existe uma dignidade intrínseca deste ser, que em tauromaquia se respeita, quer nas palavras, quer nos actos. Na prática, o respeito devido ao toiro reflecte-se de várias maneiras, entre as quais cito como exemplo, a definição de toiro como animal limpo e intocável e a regra de que nas sortes mais exigentes, o toiro deve investir a contra-querença, respeitando o princípio que o sofrimento que o animal se inflige, é de alguma maneira o efeito do seu próprio instinto ofensivo, da sua própria bravura. Quero com isto dizer que, a utilização do toiro de lide na corrida, repousa sobre a ideia que o animal que luta, enquanto seja um animal bravo, põe o valor intrínseco do seu combate por cima do seu próprio sofrimento – e é exactamente isto que o define como bravo.
Existe uma ética que chamaria de «contratualista», que trata de ajustar as nossas regras éticas face aos animais em função do tipo de relação que tenhamos contratado com eles. Não existe pois ética face ao animal em geral, uma vez que o animal representa dois sentidos completamente diferentes, e o homem mantém dois grandes tipos de relação possíveis com o animal. Na classe dos animais, devem equacionar-se dois grandes universos opostos um ao outro; um que não exige nenhuma atenção particular, uma vez que não estabelecemos com eles nenhuma forma de pacto – são os «animais selvagens» – e outro universo, com o qual mantemos trocas e portanto uma forma no mínimo implícita de direitos, que são os «animais domésticos».
A ética da domesticação esteve no fundamento de todas as grandes formas do Direito. O
Direito tradicional reconhece duas formas de seres, as pessoas (que são titulares de direitos, nomeadamente o da propriedade, mas que não podem elas mesmas ser possuídas ou vendidas) e as coisas (que não podem possuir, mas podem ser possuídas). O animal doméstico é como que um terceiro ser, nem pessoa nem coisa: como uma coisa, ele pode ser propriedade de alguém, mas ao contrário de uma coisa, não pode ser tratado de qualquer maneira e não podemos exercer sobre ele tratamentos cruéis.
Sabe-se que a questão de saber a qual das duas faunas (selvagem ou doméstica) pertenceria o toiro de lide foi de grande controvérsia em França, opondo aficionados e detractores das corridas. Na verdade, existe uma grande singularidade na relação homem/animal na corrida de toiros. O toiro é um animal de que o homem se apropriou. Além disso, ele serve um fim humano e a sua espécie só existe porque é utilizada pelo homem. Ele é o resultado (por selecção e controlo da reprodução) melhor adaptado ao fim a que se destina. Neste contexto, ele pode ser dito «doméstico» no sentido estrito da palavra. O paradoxo é que esta apropriação e esta utilização pelo homem, implica por outro lado, que ele seja criado preservando a sua rebeldia, a sua desconfiança e a sua agressividade, isto é, a sua hostilidade ao homem. É preciso torná-lo de certo modo, o mais doméstico possível (no duplo sentido da sua apropriação e da sua adaptação aos objectivos do homem) e, simultaneamente o menos doméstico possível (o mais rebelde possível ao homem, ou pelo menos o menos submisso possível). Tal é o paradoxo da bravura.
Vemos pois que todas as respostas às nossas questões da ética em relação ao animal e à da representação animal do toiro na corrida, que é o que está em causa, se apoiam num único conceito – a bravura. Toda a ética da corrida repousa pois sobre a ideia de bravura e, a sua legitimidade intelectual deve ser analisada sobre uma resposta simples a uma simples questão: «o que é o toiro?» O toiro de lide, o toiro bravo, não é nem uma coisa, nem uma pessoa, nem um animal doméstico, nem um animal selvagem, é um ser essencialmente bravo.
A ética do combate que pressupõe a lide, seria então modelada sobre o sentido desta
bravura. Deve tratar-se o animal de acordo com a sua natureza específica, combatê-lo como toiro de luta, como toiro bravo. Quando o detractor da corrida vê (ou imagina) uma corrida, ele vê um animal sofrendo, ele assiste a um drama patético: os homens divertem-se martirizando um ser sensível. Pelo contrário, quando um aficionado assiste a uma corrida, ele vê um toiro que combate. O toiro, não é para ele, um ser que sofre, mas um ser que naturalmente luta.
O animal em geral não existe, o que existe são espécies de seres vivos. O que existe, são vírus, mosquitos, cães,... toiros e homens. Daqui resulta uma moral. O toureiro, ou o aficionado, trata os mosquitos como mosquitos e não como seres vivos, nem como animais em geral; mas ele não trata o seu cão como um animal sofredor; ele trata o seu cão, animal familiar, como um animal familiar, e trata-o como deve, isto é, conforme ao que ele é por natureza e ao que ele é para ele, isto é, conforme a sua natureza de animal afectuoso e conforme às relações de afeição reciproca que ele deve ao animal familiar. Da mesma forma, ele trata o toiro de lide de acordo à sua própria natureza e ao que ele é para o homem, isto é, conforme a sua natureza de animal que luta. A ética tauromáquica é pois a seguinte: respeita-se a própria natureza do toiro combatendo-o, pois é um animal de combate: e na maneira como se combate, respeitam-se igualmente as relações singulares de amigo/inimigo que o homem tem para com ele.
O princípio subjacente a esta ética, é que o tratamento que o homem dá a cada espécie de ser vivo depende por um lado da relação, infinitamente variável, que ele pode estabelecer com cada uma delas e, por outro lado, pela natureza própria de cada ser. É uma espécie de ética aristotélica. Com efeito, o seu princípio é mais ou menos o seguinte: para cada ser, o seu bem supremo não é (pode não ser) simplesmente um estado passivo (o prazer em face à ausência de dor). O bem estar supremo pode residir numa actividade pela qual cada ser actualiza as suas potencialidades, pela qual realiza activamente a sua própria essência. É exactamente o que faz o toiro: sendo um ser por natureza bravo, ele realiza o seu grande bem lutando, ele realiza a sua natureza de lutador na luta, e ele realiza-se plenamente a ele próprio na corrida e pela corrida.