08 de Novembro de 2010

Ricardo Chibanga faz 68 anos: A aventura do primeiro matador de touros negro

08 de Novembro de 2010, 11:10

 

O toureiro moçambicano foi um fenómeno que percorreu as arenas de todo o mundo, ovacionado por Pablo Picasso e Salvador Dali, e reconhecido pela sua coragem e destreza diante dos touros, formando com a Amália Rodrigues e Eusébio o triunvirato dos embaixadores de prestígio de Portugal na época.

Para um matador de touros, dizem, o mais importante de tudo é a firmeza da sua mão direita e a argúcia dos seus olhos. Eu tinha a sua mão fechada sobre a minha e o seu olhar terno e caloroso convidava-me a sentar. Aquela mão que matara dezenas de touros na arena, em combates entre a vida e a morte, tantas vezes descritas por jornalistas, escritores e aficionados.

Os olhos nunca falham. Não podem. Têm de medir as distâncias e avaliar o momento certo. A mão de Ricardo Chibanga, que agora apertava a minha, fora a mesma que suspendera, nas bancadas da praça de touros de Las Ventas, em Madrid, e em Sevilha, a respiração de aficionados como Pablo Picasso, Salvador Dali e Orson Welles, antes de uma explosão de júbilo e regozijo, cujo fascínio e olhar poético só os verdadeiros amantes das corridas podem explicar.

No mesmo ano em que o jovem Chibanga desembarcava em Lisboa, 1962, Ernest Hemingway  (que escreveu entre outros, ‘Morte ao Entardecer’, o livro que fez mais pela divulgação das corridas de touros no mundo do que qualquer outro) punha um fim à vida com um tiro de caçadeira na boca, na sua propriedade de Idaho. Amante da festa brava, desde a Feria de San Fermín, nos anos vinte do século passado, Hemigway partiu sem conhecer Ricardo Chibanga. Teria por certo gostado de ver o matador moçambicano na arena e de lhe apertar a mão, no final de uma faena.

Durante meses, o encontro com aquele que é considerado o primeiro matador de touros negro de toda a História foi sendo adiado por questões de agenda e mais tarde por uma inusitada operação às cataratas. Mas eu tinha de conhecer o mestre. Depois de obter luz verde fizemo-nos à estrada. A tempestade e o céu carregado de Lisboa foram dando lugar a uma brisa outonal e ao chegarmos à Golegã, as folhas das árvores da praça central estavam tão mudas como a estátua do toureiro Manuel dos Santos, o grande responsável pela vinda de Ricardo Chibanga para a Metrópole.

 

O menino da Mafalala


A mão delgada e gentil, o nervosismo antes da entrevista. Muito antes de segurar a capa e a espada, aquela mão franzina ajudara a limpar a antiga praça de touros de Lourenço Marques (uma das quatro existentes em toda a África), nos anos cinquenta, ali a dois passos da sua casa, no bairro da Mafalala, e colara cartazes pela cidade, anunciando a chegada das corridas da Metrópole, que se realizavam nos meses de Dezembro, Abril e nas festas de Junho.

Aos 14 anos, Chibanga apaixonou-se definitivamente pelos touros e por aquela arte tão remota e estranha à sua cultura, que deixava os amigos perplexos. O futebol não era desafio para ele. As suas pernas estavam destinadas a outros palcos, a outros trajes. Filho de uma família muito pobre, não havia dinheiro para as entradas e ajudar na organização dos espectáculos sempre podia garantir-lhe um lugar nas bancadas.

Vacas e bezerros

Vídeo: Entrevista a Ricardo Chibanga, na Golegã

 

 

Vacas e bezerros

Em 1962, dois jovens moçambicanos, Ricardo Chibanga e Carlos Mabunga, tiveram talento e coragem suficientes para convencerem o empresário Manuel dos Santos a interferir junto do governador-geral da província para que os enviasse para Portugal, para aprenderem a nobre arte do toureio. Antes, o próprio Eusébio, também ele natural da Mafalala, e numa das suas viagens a Moçambique, disse-lhe que se ele gostava assim tanto de touros o melhor mesmo era mudar-se para Portugal.

Os três meses de estágio souberam a pouco ao jovem Chibanga. E depois de cumprir o serviço militar, em Lisboa, decidiu que ainda era cedo para regressar a Moçambique e rumou à pequena cidade da Golegã, terra de touros e cavalos, situada a 100 quilómetros a norte da capital, disposto a tudo para se tornar num verdadeiro toureiro. Mas à sua espera havia apenas bezerros e vacas e muitas horas de trabalho duro pela frente.

Na região há quem se lembre ainda dos touros corridos e das verdadeiras ‘tareias’ que Chibanga apanhava durante essas ‘vacadas’ iniciais. O moçambicano era destemido, sem dúvida, e para algumas pessoas até um pouco ‘maluco’. No entanto, era inequívoca a habilidade e o talento que ia demonstrando, de ano para ano, nas feiras onde se apresentava. O aprendiz Chibanga não estava disposto a tornar-se apenas numa nota de rodapé na história do toureio nacional.

Por entre a luz e a sombra, os anos foram passando e Chibanga aprendeu a conhecer os touros com os melhores mestres e ganadeiros locais e passou a respirar o pó da arena, como se nada mais do que esse horizonte de encantamento lhe estivesse destinado na vida

Da Golegã para o mundo

Os olhos que agora me observavam eram os mesmos que recordaram o medo ao verem surgir na sua direcção o primeiro touro a sério, na praça de touros do Campo Pequeno, no ano de 1968. Os mesmos olhos que veriam a admiração no rosto do público, nas bancadas, por um africano poder sair-se tão bem na lide de uma besta mortífera de mais de quinhentos quilos. Nas suas casas, os portugueses também viam, nos directos da RTP – quando o sangue era apenas uma pasta escura e brilhante que escorria pelo dorso do animal - , a coragem, os reflexos e a velocidade felina daquela nova figura, que ia ao ponto de enfrentar o touro de joelhos e cuja cor da pele contrastava, furiosamente, com o brilho prateado e reluzente do fato.

Para as crianças de então, a sua coragem não era tão perturbadora nem aflitiva. O super-Chibanga era um novo super-herói. E a impressão de magia que causava na arena era reveladora de toda a beleza dos seus movimentos; da paixão pela sua arte, a de um condutor do espectáculo. No fundo, era o rapaz da Mafalala perseguindo a grandiosidade. E Ricardo Chibanga passou depressa de promessa da arena a estrela em ascensão.

Seguiu-se a Espanha. Sevilha e mais tarde Madrid consagrá-lo-iam definitivamente, e os jornais, entusiasmados com esta nova descoberta, teciam rasgados elogios de página inteira sobre El Africano, e festejavam a chegada do primeiro matador de touros negro da história da tauromaquia. No dia em que a morte roçou-lhe a figura através de uma cornada inesperada nos queixos, os jornalistas acompanharam diariamente o coma de Chibanga, mantendo o mundo da afición num suspense permanente, que haveria de durar várias semanas.

Quando Chibanga finalmente regressou, Picasso declarou aos jornais, do alto dos seus 89 anos, que o moçambicano era dos poucos matadores capazes de o levarem a uma corrida. E nas bancadas o mestre não parava de gritar: “Olé! Chibanga!”

O homem afável de óculos de aros de massa, que de um canto do Café Central da Golegã cumprimenta os amigos, atingiu o estrelato como poucos na sua arte; apertou a mão e conviveu com artistas portugueses e internacionais e jantou com as maiores figuras do seu tempo. Christian Barnard, o cirurgião sul-africano, autor do primeiro transplante cardíaco, e o multimilionário Stanley Ho, fizeram questão de o conhecer pessoalmente e expressar-lhe toda a sua admiração. E o que terão visto nele foi que a grandiosidade que o acompanhava residia na humildade. Que a vida toda lhe pertencia.

O matador africano atravessou o Atlântico para encantar a Monumental do México, as praças da Venezuela, Colômbia, Califórnia, formando, ao lado de Amália Rodrigues e do seu compatriota Eusébio, o triunvirato dos embaixadores de Portugal de maior prestígio, entre os finais das décadas de sessenta e inícios de setenta. No dia da sua consagração, na Maestranza de Sevilha, quando se preparava para tomar a sua alternativa, e a mando do governo português, a RTP deslocou uma equipa de técnicos e jornalistas para relatarem e transmitirem em directo o grande acontecimento.

A mão certeira de outros tempos interrompe a conversa, retira do bolso um lenço e seca a prótese ocular lacrimejante. Certa vez, na arena, conta Chibanga, durante uma lide de joelhos, o touro roçou-lhe o ombro com o flanco e uma das farpas espetadas no dorso do animal destrui-lhe por completo o olho esquerdo.

Depois de se apagarem as luzes das grandes praças internacionais, Chibanga mandou construir uma desmontável e estabeleceu-se como empresário, na região da Golegã, levando as corridas de touros às cidades do interior. Hoje, por onde passa, o velho matador é uma figura querida e estimada, cumprimentada pelos habitantes da região. O brilhantismo da sua carreira está ainda bem vivo nas suas memórias.

Ricardo Chibanga é simples, sem qualquer traço de apoteótico na sua expressão. É óbvio nele o impulso religioso, talvez preenchendo agora mais o espaço onde antes existiram a aventura e o medo. Afinal, matar touros na arena, sob o olhar de milhares de espectadores, não se faz sem um certo grau de religiosidade, uma espécie de liturgia, que pelo menos possa fazer parte de algo grandioso e importante. “A fé, a vontade de triunfar”, podem ser um princípio espiritual e serve para explicar essa vertigem tão antiga e tão profunda, parte da própria condição humana.

Aos 68 anos (completados a 8 de Novembro), Ricardo Chibanga tem uma vida centrada nos amigos,

nos outros, não tendo muito tempo para elogios. A sua atenção é bem-humorada, e não se coíbe de ligar a um ou outro amigo famoso para facilitar um encontro com o jornalista. Na sua casa situada da zona histórica da cidade, convida-nos para uma sala ampla com lareira, uma espécie de museu das suas recordações: duas imponentes cabeças de touro na parede, cartazes de corridas espanholas e portuguesas, fotografias, quadros pintados a óleo do matador enquanto jovem, um dossiê repleto de recortes de jornais internacionais.

Mas imagens televisivas das suas corridas não existem: a RTP negou-se a facultar-lhe cópias. É aqui que recebe os amigos. E a sua maior preocupação de momento, confessa, com aquela honestidade típica dos aficionados, é ter tudo pronto a tempo para o próximo São Martinho. Um Mercedes branco solitário, estacionado ali mesmo ao lado, vai ganhando poeira.

A vida heróica entrou agora naquela lassitude em que o regozijo máximo de um momento pode estar num bom bife à casa, servido com batatas, em terra de ganadeiros. A impressão que fica, depois de uma conversa e de um almoço bem-humorados, é a de alguém que procurou sempre a felicidade, empurrado – sem o saber – pela glória; alguém submetido à necessidade de criar qualquer coisa de distinto, um acontecimento onde todos os seus elementos e participantes estariam garantidos pela fé contra a insuficiência da vida. O mundo sem Ricardo Chibanga não teria sido melhor. No seu olhar há amor, o tipo de amor insuflado por alguma coisa inominável, que ao longo da vida o escolheu e lhe foi abrindo portas, sem qualquer tipo de renúncia em troca. A história da passagem de Chibanga pela Golegã não está destinada a constar apenas nas páginas dos jornais ou revistas da especialidade. Como se não bastasse a memória dos homens, a placa escolhida pela Câmara Municipal para perpetuar o seu nome à sua terra adoptiva: “Rua Ricardo Chibanga, Matador de Touros, aluno da Escola de Toureio da Golegã, que tomou alternativa na Real Maestranza de Sevilha, em 15 de Agosto de 1971” revela toda a ternura que a cidade nutre por ele. Uma homenagem rara ainda em vida a um dos seus filhos mais ilustres.

A mão certeira e implacável de outros tempos afaga o mármore para a fotografia e os dedos percorrem timidamente as palavras da dedicatória. O orgulho e o reconhecimento no olhar. O tique que reconstrói a infância. A longínqua Mafalala na curva do voo de um pássaro. O coração feliz. “Sou um homem feliz, na cidade que eu amo”.

 

Texto:  Joaquim Arena@

Fotos: Clair Cunha

http://noticias.sapo.mz/info/artigo/1104785.html

publicado por Santos Vaz às 12:30

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